Como cuidar da saúde mental dos estudantes na volta ao ensino presencial?
- Em 23 de junho de 2022
Crescem os casos de ansiedade, depressão e agressividade que, em parte, foram agravados pela pandemia. Acolhimento dos alunos e parceria com as famílias são fundamentais para o diagnóstico e o encaminhamento
Imagine que você está aplicando uma avaliação e uma aluna começa a ficar muito nervosa e com dificuldade para respirar. O efeito parece contaminar todos e, alguns minutos depois, vários estudantes passam mal. Foi isso que aconteceu em uma escola de Ensino Médio em Recife (PE), em abril deste ano.
“O 2º ano estava num momento de atividade avaliativa e uma aluna começou a chorar. A escola já sabia que ela fazia acompanhamento psicológico para ansiedade, e ela foi retirada da sala. Logo em seguida, um colega também entrou em crise. Em um efeito dominó, outros estudantes começaram a entrar no mesmo processo. Isso se ampliou ao ponto de termos 25 jovens na escola com necessidade de atendimento médico”, conta Neuza Pontes, responsável pela Gerência Regional de Educação Recife Norte da Secretaria de Educação de Pernambuco.
De acordo com ela, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) foi acionado, e o profissional da primeira ambulância que chegou achou melhor acionar outras unidades de pronto atendimento para dar uma assistência mais rápida no local, sem necessidade de remoção.
Segundo Neuza, a equipe de psicólogos com os quais a Secretaria de Educação conversou esclareceu que isso aconteceu porque os jovens já possuíam alguma fragilidade e necessidade de amparo psicológico que, na maioria dos casos, a escola e a família ainda não haviam percebido, e que presenciar outros colegas em crise serviu como um gatilho psicológico. “Desde o retorno das atividades presenciais, em 2021, as escolas do estado procuram fazer um trabalho de acolhimento, mas ainda assim muitas delas se depararam com casos de ansiedade. Foram registradas crises de ansiedade coletiva em três escolas”, relata.
Ao longo de dois anos de isolamento social, muitas pessoas começaram a apresentar ou viram crescer manifestações de problemas emocionais. No que diz respeito aos estudantes, a volta às aulas presenciais não funcionou como solução para os problemas, como muitos imaginavam. Em muitos casos, a dificuldade em lidar com os colegas e com os professores, a pressão pela recomposição de aprendizagens e outras questões relacionadas à pandemia até mesmo agravaram a situação. Em todo o país, são muitos os relatos de pais e professores que demonstram uma preocupação crescente com o comportamento e a saúde mental dos jovens. A pesquisa Situação Mundial da Infância 2021 – Na minha mente: Promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças (disponível em inglês), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), aponta que, no mundo, mais de um em cada sete meninos e meninas com idade entre dez e 19 anos vivem com algum transtorno mental diagnosticado.
Contribua para a saúde mental dos alunos em suas aulas
Entenda como promover uma cultura de autoconhecimento e de empatia pelo próximo por meio do engajamento de toda a comunidade escolar e de atividades que contemplam habilidades previstas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para História, Ciências e Língua Portuguesa nos Anos Iniciais do Fundamental.
Gustavo Estanislau, psiquiatra da infância e da adolescência, pesquisador e membro associado do Instituto Ame Sua Mente, explica que, até os oito anos de idade, as questões mais comuns estão relacionados à agitação e à impulsividade. Já nos adolescentes, a percepção sobre si mesmo e a relação com o mundo é mais complexa. Eles dão bastante importância para a vida social e a opinião dos pares e percebem a vida e a morte de um modo mais elaborado do que as crianças. Nessa fase, aumentam os casos de ansiedade, depressão e comportamento destrutivo, como o bullying, e autodestrutivo, como a automutilação.
Quando não estão bem, os sinais mais comuns são problemas com sono, alterações no padrão de alimentação (comer pouco ou em excesso), mudança no comportamento (mais agitado ou muito mais lento), medos excessivos, aparente regressão no desenvolvimento (medo de separação da mãe e dificuldade para realizar tarefas que já fazia, por exemplo), isolamento, pessimismo, queda no rendimento escolar e queixas físicas – estas costumam ser avaliadas por outros médicos, mas não se chega a um diagnóstico.
Ana Carolina D’Agostini, psicóloga, pedagoga e coordenadora de formações do Instituto Ame sua Mente, esclarece que é importante pensar em três palavras-chave para saber se o comportamento pode se caracterizar como um transtorno mental e o que será feito com as informações dadas pela escola e pela família e com a avaliação psicológica e médica: intensidade, duração e prejuízo. “Se a duração for só de dois ou três dias, isso é uma emoção, e as emoções são passageiras. Quando a situação é mais grave, os sintomas podem não passar com ações corriqueiras de autocuidado. Também é preciso avaliar se e o quanto aquilo impacta o modo de ser da pessoa e a vida dela.”
No que diz respeito à ansiedade, que chamou bastante a atenção nos casos de crise coletiva em Pernambuco, o psiquiatra Gustavo destaca quando ela deixa de ser normal. “Ansiedade é um estado de alerta que no dia a dia é útil para nos prepararmos para situações importantes, como uma prova. O problema é quando esse estado de alerta aumenta e começamos a reagir sobre coisas que não precisaríamos e em uma medida desnecessária”, diz. “Pensar em uma prova e se sentir angustiado ao ponto de render menos, não conseguir se concentrar, faltar à escola”, exemplifica. “O que diferencia a ansiedade normal e a patológica é a alteração de comportamento: evitar e/ou não conseguir interagir normalmente com determinadas pessoas, ambientes e situações.”
Qual é o papel da escola
Veja algumas ações que as instituições de ensino podem realizar
1. Apoio coletivo. A escola precisa estar focada em soluções. Em vez de dizer que a culpa da tristeza de um aluno é dos pais, por exemplo, ela pode organizar uma conversa com a família para estabelecer uma parceria que contribua para a vida pessoal e escolar da criança ou do adolescente.
2. Cuidado com a pressão. Atividades avaliativas fazem parte do processo de ensino e aprendizagem e não precisam deixar de acontecer, mas é necessário tomar cuidado para que não haja na escola um ambiente de pressão e competitividade. Isso se torna ainda mais forte na medida em que muitos alunos voltaram bastante inseguros para o ensino presencial. O ideal é que primeiro o estudante se perceba capaz de fazer o que é demandado para depois seguir para desafios maiores.
3. Acolhimento e escuta. Assim como se fala sobre recomposição de aprendizagens, também é preciso pensar na recomposição emocional. A escola deve organizar momentos de conversa e atividades (escritas, orais, relacionadas às artes etc.) em que os estudantes possam elaborar e expressar, individual e coletivamente, seus sentimentos sobre si, sobre o grupo, sobre a escola e sobre o mundo.
4. Encaminhamento para a rede de apoio. Quando os professores observam e escutam os alunos de forma atenta, fica mais fácil perceber mudanças no padrão de comportamento das crianças e dos adolescentes. Se necessário, a escola deve encaminhar o estudante para a rede de apoio, para ser atendido por um psicólogo, por exemplo.
Pandemia e o que há de novo no comportamento dos estudantes
Infelizmente, questões emocionais sempre afetaram (em menor ou maior grau) a humanidade. De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), metade de todos os problemas de saúde mental começa até os 14 anos de idade, mas a maioria dos casos não é detectada nem tratada. Soma-se a isso o fato de que a pandemia de Covid-19 trouxe uma série de novas experiências, como medo de contágio, luto social, isolamento por tempo indeterminado e impactos na renda familiar e nas condições de vida, que intensificaram essa situação.
Na volta ao ensino presencial, muitos educadores perceberam os estudantes mais agressivos e indisciplinados. Segundo Gustavo, uma série de interrelações com a pandemia pode explicar esse quadro. Para começar, as pessoas reagem de modo diferente ao estresse causado por uma situação catastrófica, e algumas delas ficaram mais reativas e impulsivas. “Estamos vivendo uma retomada complexa e cheia de desafios que geram em muitas pessoas uma sensação de fracasso, o que, por sua vez, causa a necessidade de extravasar a chateação”, afirma. “Além disso, um dos sintomas da depressão, que está aumentando nos últimos anos, é a agressividade.”
Outro aspecto que deve ser observado, principalmente pelos professores, é que os alunos passaram muito tempo em casa e esqueceram de uma série de regras sociais e escolares que já estavam assimiladas. “O afastamento por dois anos faz com que os adolescentes questionem, direta ou indiretamente, o papel social da escola de forma mais veemente”, completa o psiquiatra.
Pressão para atingir resultados
Além das questões emocionais, as escolas têm se preocupado bastante com a recomposição de aprendizagens. Nesse contexto, aspectos do processo de ensino e aprendizagem, como as avaliações, podem pressionar os estudantes e causar reflexos negativos.
”Essa pressão em nada contribui para o necessário acolhimento de crianças, adolescentes e jovens que viveram intensamente o isolamento social e a privação de trocas e aprendizagens de várias naturezas”, comenta Thereza Paes Barreto, diretora pedagógica do Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE). Ela aponta que a cobrança excessiva pode provocar desinteresse, descrença na própria capacidade de aprender e, por consequência, desengajamento.
A tendência do aumento das taxas de evasão já se confirma em vários estados brasileiros e se torna um grande desafio para as escolas garantir que os estudantes não apenas retornem e permaneçam na escola, mas, sobretudo, que se engajem na própria aprendizagem.
Empatia e Literatura: aliadas da saúde mental na escola
Ações para promover a saúde emocional dos alunos
Em Pernambuco, os casos de ansiedade nas escolas estaduais acenderam o alerta de que era preciso investir na escuta acolhedora de todos os estudantes e, em alguns casos, no encaminhamento para atendimento psicológico especializado. Gestores e professores receberam uma formação sobre questões socioemocionais e participam de palestras sobre o tema. Uma rede de proteção que envolve vários parceiros também começou a atuar diretamente nas escolas para dar apoio quando necessário. Fazem parte dela a Secretaria de Saúde, por meio do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), o Conselho Tutelar e a Vara de Infância.
Atualmente, acontecem nas escolas os círculos restaurativos de escuta, que são rodas de conversa conduzidas por especialistas em educação inclusiva e psicólogos. Segundo Neuza, nesses círculos, os adolescentes têm reconhecido a escola como um local para pedir apoio. “Eles sempre colocam que o momento da pandemia gerou muita insegurança e medo devido ao risco de morte, perda de emprego, situação de vulnerabilidade social e modificação da composição familiar.”
Quando o trabalho começou e as famílias foram chamadas para irem à escola ou orientadas a procurar atendimento psicológico para os filhos, muitos pais não deram importância. “Eles falavam que isso era besteira de adolescente ou que o jovem estava inventando”, conta Neuza. Gustavo observa que o adoecimento emocional de crianças e adolescentes é cercado de estigmas que prejudicam a prevenção e o tratamento de possíveis transtornos.
O psiquiatra diz que há adultos que acreditam que crianças não enfrentam problemas de saúde mental; outros atribuem a culpa aos pais, o pode levá-los a não buscar uma avaliação profissional por medo de serem criticados e culpabilizados. “Além disso, também é importante saber que problemas emocionais não estão associados a redução de inteligência e problemas de caráter.”
Parceria família-escola e articulações com outros setores
Para que a saúde emocional dos estudantes seja respeitada, de acordo com Gustavo, é necessário que escola e família estabeleçam uma parceria nesse cuidado. As duas partes precisam estar em diálogo para perceber os possíveis sinais que o aluno está dando e, caso seja necessário, encaminhá-lo para um atendimento especializado. Nesse caso, são três partes envolvidas na conversa.
Thereza Paes Barreto reconhece que a busca por apoio pode ser difícil nas escolas públicas, que dependem do sistema para inicialmente reconhecer como necessária a contratação de profissionais da saúde e, posteriormente, executar os processos. Ela defende que sejam organizadas articulações entre os setores do governo – Secretaria de Educação, Secretaria de Assistência Social e Secretaria de Saúde – para conceber e executar uma política de atendimento às necessidades sinalizadas pelas escolas. “Sozinha, a escola não dispõe de recursos e competências para apoiar os estudantes e a sua equipe escolar, que também traz demandas próprias e igualmente legítimas.”
Ana Carolina D’Agostini lembra que nenhum transtorno mental acontece do nada. “Sempre começa com alguns sintomas mais leves, mas que requerem atenção. Se não forem cuidados, eles podem se tornar um problema de saúde mental, que tem impacto na vida da pessoa. Se a atenção devida é dada desde cedo, há como prevenir.”
Onde conseguir ajuda
Poucas escolas têm um psicólogo em seu quadro de funcionários. Nesse cenário, uma alternativa é estabelecer parcerias externas e conhecer os serviços disponíveis:
– Secretarias de Saúde. A Secretaria de Educação pode solicitar à Secretaria de Saúde do estado ou município profissionais de psicologia para atuarem nas escolas. Eles podem dar palestras e conduzir rodas de conversas com educadores, famílias e estudantes. Também é importante que haja psicólogos disponíveis para atender os alunos encaminhados para acompanhamento individual.
– Faculdades de Psicologia. A direção da escola pode entrar em contato com instituições de ensino superior públicas ou privadas da cidade ou da região. Em muitos casos, alunos de graduação ou pós-graduação precisam fazer estágio supervisionado e têm interesse em desenvolver projetos com crianças e adolescentes.
– Instituto Ame Sua Mente. O Ame Sua Mente, por exemplo, organizou o conteúdo Precisa de ajuda em saúde mental?. Ele traz o mapeamento dos principais serviços de atenção psicossocial e assistência social do Sistema Único de Saúde (SUS), contatos para atendimento psiquiátrico, psicológico e de casos de surtos, violência doméstica e sexual, além de um modelo de formulário para encaminhamento de jovens.
Fonte: Nova Escola
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