Gestão e muito mais: o que faz um bom programa educacional
- Em 14 de outubro de 2022
Em livro recém-lançado, Olavo Nogueira Filho destrincha bons exemplos de reformas educacionais e convida o leitor a mergulhar na efetividade dessas práticas
De um modelo elitista que resultou em uma enorme desigualdade, para um direito apoiado na Constituição Federal de 1988, a educação brasileira teve ao longo das últimas décadas uma trajetória na direção da universalização do acesso e da melhoria da qualidade da escola pública.
A dívida histórica, especialmente com os estudantes mais vulneráveis, ainda está distante de ser resolvida. Isso não significa, no entanto, que progressos não podem ser notados. No livro “Pontos fora da curva: por que algumas reformas educacionais no Brasil são mais efetivas do que outras e o que isso significa para o futuro da educação básica”, o atual diretor-executivo do Todos Pela Educação, Olavo Nogueira Filho, aborda o porquê das diferenças dos resultados de reformas educacionais, mesmo entre localidades de nível socioeconômico similar, em particular aos caminhos que vêm sendo seguidos por aqueles que se destacam positivamente da média – os “pontos fora da curva”, que no livro são representados principalmente por Ceará, na alfabetização, e Pernambuco, no ensino médio.
“Não são, é claro, experiências perfeitas e tampouco completas, mas do ponto de vista da elevação de qualidade média com equidade, que é o parâmetro que eu utilizo no livro para qualificar uma reforma “efetiva’, são faróis”, diz Olavo na entrevista que você lê abaixo.
Em um momento no qual o Brasil vive grandes mudanças com a chegada da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e da reforma do ensino médio, a gestão de secretarias, bem como a gestão escolar e os educadores se veem diante de novos processos. Sobre este ponto, Olavo ressalta que o livro quer ir além de responsabilizar quem implementa tais políticas, e que seria errado dizer que essa tarefa resume a “executar” ou “tirar do papel”. “Tem uma frase ótima do Jal Mehta (pesquisador da Universidade de Harvard), que diz: quando o assunto é implementação, a pergunta-chave não é se o poder está no topo ou base, mas como topo e base interagem”.
Ao longo da conversa, Olavo menciona ainda o papel de gestores escolares, professores e da escuta de estudantes para que políticas e reformas educacionais sejam bem-sucedidas. Confira.
Porvir – Poderia traduzir para um público leigo o que seriam as reformas de 1ª, 2ª e 3ª geração? De que forma um menor investimento antes de 1988 fez com que o Brasil tivesse que lidar com reformas de gerações anteriores para lidar com problemas modernos nas décadas seguintes?
Olavo Nogueira Filho – O que tento ilustrar com essa categorização é a evolução do pensamento e das práticas reformistas na educação ao longo das últimas quatro, cinco décadas, sobretudo quando se observa a trajetória de países que decidiram investir fortemente na educação pública há bastante tempo – o que, como bem evidencia o Antônio Gois no seu mais recente livro “A que ponto chegamos”, não é o caso do Brasil. Basicamente é um processo que começa com garantir que todas as crianças e jovens tenham acesso à uma escola com infraestrutura adequada (1ª geração) e que, na sequência, avança para a introdução de práticas de gestão – em boa medida centradas no tripé currículo-avaliação-incentivo – para tentar melhorar a qualidade dessa escola (2ª geração). À luz de resultados que ficam aquém do desejável, há um movimento de questionamento a respeito da efetividade dessas práticas. Surge então uma nova visão sobre reformas educacionais (3ª geração), respaldada por um razoável número de autores, ancorada na ideia de capacidades dos sistemas e na lógica da coerência sistêmica, de que a resolução de problemas complexos exige medidas em múltiplas frentes e muito bem articuladas entre si. O ponto central – e é aqui que me parece estar uma das principais contribuições do livro para o debate brasileiro – é que esses novos caminhos de 3ª geração olham para os erros e limitações da 2ª geração, mas não descartam parte importante do que ela trouxe. Ou seja: ao invés de taxar a 2ª geração de reformas como uma ação de completo fracasso, o pensamento de 3ª geração a compreende como uma ação incompleta e constrói a partir dela.
Porvir – Em que situações esse atraso ou mesmo descaso pode ser sentido na realidade educacional brasileira?
Olavo Nogueira Filho – Usando essa lente das três gerações de reformas educacionais, creio que uma das expressões mais fortes do descompasso brasileiro se manifesta na heterogeneidade da natureza e do estágio dos esforços “reformistas” entre as redes de ensino, mesmo quando a análise é circunscrita aos sistemas de médio e grande porte, que é o foco do livro. Demoramos muito para elevar a prioridade política dada à educação pública, mas após a Constituição Federal de 88, quando a educação passa a ser um direito, é inegável que as últimas três décadas viram florescer múltiplos esforços, tanto do governo federal quanto dos entes subnacionais. Ocorre que, na lógica subnacional, esses esforços se deram em ritmos e formas muito diferentes, em parte porque nossa estrutura federativa pós-Constituição Federal de 88 reforçou a autonomia dos entes, mas, também, porque o grau de coordenação de políticas nacionais oscilou muito nos últimos 30 anos. Resultado disso é que hoje temos no Brasil algumas redes de ensino que ainda lidam com a agenda de primeira geração, muitas que estão em diferentes estágios da segunda geração e algumas poucas que já adentraram a terceira. Nesse último grupo, há aquelas que, inclusive, foram muito eficazes em migrar rápido da segunda para a terceira geração, e no livro tento sustentar que isso é central para explicar os bons resultados educacionais. Tento fazer essa argumentação a partir de dois dos casos mais bem-sucedidos dos últimos anos: Ceará, na alfabetização, e Pernambuco, no ensino médio. Não são, é claro, experiências perfeitas e tampouco completas, mas do ponto de vista da elevação de qualidade média com equidade, que é o parâmetro que eu utilizo no livro para qualificar uma reforma “efetiva”, são faróis. E quando se leva em consideração o contexto socioeconômico adverso em ambos estados, aí se tornam pontos fora da curva no Brasil.
Porvir – Quais as características de gestores de redes e de gestores escolares capazes de promover reformas consistentes como essas dos pontos fora da curva?
Olavo Nogueira Filho – Essa pergunta toca em uma das principais características da chamada terceira geração de reformas e que, não por acaso, estão presentes nas reformas cearense e pernambucana. O ponto é o seguinte: fala-se muito que o problema da educação é “falta de gestão”, não é? Mas o que busco provocar no livro é: de que “gestão” estamos falando? Isso porque a “boa gestão” que fez Ceará e Pernambuco avançarem não tem a ver, apenas, com aspectos gerenciais – planejamento, metas, monitoramento, foco no resultado etc. Isso está lá, sim, e é muito importante. Mas vai além disso. E o que a pesquisa que deu base ao livro defende é que é um outro tipo de gestão educacional que, quando combinada aos aspectos ditos mais gerenciais, faz mexer o ponteiro. Esse tipo de gestão, por exemplo, é aquele que entende que a chave para a transformação está na apropriação e no engajamento das pessoas em torno de um propósito compartilhado; é um tipo de gestão que entende que pedagogia importa muito, que sabe que se não impactar o que ocorre dentro da sala de aula, alterações serão cosméticas; é um tipo de gestão que compreende que em sistemas de grande porte tem que descentralizar, mas que ao fazer isso, tem que fazer de maneira coordenada, fortalecendo a capacidade da gestão regional e da gestão local de mobilizar um grande número pessoas em torno de um projeto comum.
Porvir – De maneira simples, como Ceará e Pernambuco podem ser vistos como pontos fora da curva e qualificaram o debate educacional para além de mais “vontade política” e “coragem”?
Olavo Nogueira Filho – A resposta mais objetiva que eu encontrei até agora para tentar sintetizar os argumentos do porquê as reformas cearense e pernambucana foram mais efetivas é a seguinte: as lideranças dessas reformas compreenderam que, mais do que “o que” avançar, quais políticas, quais programas, era o “caminho da reforma” que faria a diferença – ou seja, o “como” avançar. No livro, tento destrinchar isso a partir de três grandes questões.
Porvir – Quais?
Olavo Nogueira Filho – Primeiro, foram reformas que articularam metas e incentivos com muito investimento nos professores. Ceará e Pernambuco, com mais ênfase para o Ceará, fugiram da ideia de que “bastam incentivos” ao mesmo tempo em que compreenderam que apoiar os professores é condição necessária, porém, insuficiente, e que incentivos podem, sim, ajudar a sair da inércia. O caso do “ICMS Educação”, do Ceará, é uma tremenda inovação. Segundo, cuidaram bem do processo de formulação e, sobretudo, de implementação. Investiram em estratégias para garantir senso de apropriação e engajamento, compreenderam que mudanças em redes de grande porte dependem fortemente das estruturas de liderança no nível do meio (órgãos regionais) e na base (diretores). Fizeram bem a chamada “descentralização coordenada”, combinando uma ação diretiva com alto grau de autonomia, em particular no caso do Ceará. Terceiro, e aqui isso é mais evidente no caso pernambucano, desenharam reformas que, no fim do dia, foram capazes de promover mudanças sistêmicas no nível da escola. Em outras palavras, compreenderam que se é para mudar para valer, tem que mexer para valer. Fizeram avançar estratégias que alteram múltiplas dimensões do dia a dia escolar ao mesmo tempo e durante muito tempo. Foram, portanto, reformas intensivas, focadas na construção de um sólido “sistema de boas escolas” e que tiveram tempo suficiente para garantir consolidação.
Porvir – Existe algo transversal nas experiências do Ceará e de Pernambuco?
Olavo Nogueira Filho – Chamo a atenção no livro, e me parece importante destacar: Ceará e Pernambuco mostram que o caminho para reformas mais efetivas passa pela conciliação de medidas costumeiramente mais associadas ao campo da esquerda (ex: autonomia, contextualização, apoio aos professores) com medidas costumeiramente mais associadas ao campo da direita (metas, incentivos, responsabilização). Veja, por “conciliação” não quero dizer “consenso”, mas sim a combinação de posições normalmente vistas como antagônicas.
Porvir – Dentre todos os “comos” da formulação e de implantação de reformas ou políticas educacionais recentes, como você avalia a participação de estudantes? Especialistas estão abertos a escutá-los na hora de desenhar novas políticas educacionais?
Olavo Nogueira Filho – Entendo que o caso pernambucano, que se concentrou em mudanças estruturais no ensino médio, também foi capaz de inovar nessa seara. A construção do modelo pedagógico da chamada “escola integral em tempo integral” foi liderada por educadores que enxergam o papel ativo dos estudantes como premissa de uma escola capaz de engajá-los, de motivá-los para a aprendizagem. As contribuições de Bruno Silveira, de Thereza Barreto, do Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), liderado pelo Marcos Magalhães, foram centrais nesse processo. E na base do modelo está a “pedagogia da presença”, concebida pelo mineiro Antônio Carlos Gomes da Costa, que compreende o protagonismo juvenil não como algo apenas desejável, mas como aspecto central para o desenvolvimento integral do jovem. Então, como é um elemento estruturante da proposta pedagógica dessa escola, a participação dos jovens se torna a prática cotidiana. Sem dúvida, esse é um “como” importante. Basta visitar algumas escolas e conversar com os estudantes para perceber o poder que isso tem.
Porvir – Como manter a coerência nas ações de gestão e não querer resolver tudo ao mesmo tempo depois de uma pandemia?
Olavo Nogueira Filho – Pois é, essa talvez seja uma das grandes armadilhas para os gestores bem-intencionados, de querer resolver tudo ao mesmo tempo. É armadilha porque de fato tem mil problemas, muitos dos quais foram agravados pela pandemia, e tendo já passado pela máquina pública, sei que não é tão simples essa história de “tem que focar”. Dito isso, se a ideia é tentar promover mudanças estruturais, e o que precisamos na educação é disso, a literatura internacional e as experiências brasileiras de maior êxito nos alertam: cuidado para não confundir as escolas com coisas demais. Tem uma frase do Michael Fullan, que também cito no livro, em que ele diz: “hoje em dia o problema não é a ausência de objetivos, mas a presença de muitos objetivos para múltiplas finalidades, desconexas e que mudam a todo momento.” E aí ele segue para dizer que mesmo que sejam boas ideias, o simples volume torna impossível para as pessoas absorverem de forma a dar profundidade. Na pesquisa que embasa o livro, fui buscar evidências se isso é recorrente nas redes de grande porte, e uma pesquisa de 2013, com os 27 estados, liderada pelo Fernando Abrucio, evidenciou exatamente isso. Durante as entrevistas, escolas de muitos estados externaram o desejo de serem mais ouvidas, de terem articulação mais alinhada com a secretaria, para evitar que sejam “um depósito de ações”. Então, acho que a lição do Ceará e de Pernambuco, que conseguiram perseverar com o avanço de mudanças estruturais, é concentrar em poucos objetivos, mas, para esses poucos objetivos, garantir intervenções com profundidade e ao longo de um bom tempo.
Fonte: porvir.org – por Vinícius de Oliveira
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